Recall, ou como a mesma coisa pode ser vista de duas maneiras opostas

Por  Ronaldo de Breyne Salvagni

Os “recalls” de automóveis são geralmente vistos pelas pessoas como algo negativo, que prejudicam a percepção de qualidade do veículo e do seu fabricante. Por outro lado, as mesmas pessoas acham bons os “updates” de jogos e programas de computador, associando-os à imagem de um bom produto e de um fabricante responsável e preocupado em manter seu produto atualizado e funcionando bem. Entretanto, ambos, o “recall” e o “update”, são essencialmente a mesma coisa – uma correção de erros de projeto ou de fabricação do produto, de responsabilidade da empresa fabricante.

A quase totalidade dos “updates” tem por finalidade corrigir erros e defeitos do produto original – basta observar a lista de modificações de qualquer um deles para constatar que a finalidade é “to fix” isso e “to fix” aquilo, ou seja, corrigir erros de programação. Melhorias reais de jogos e programas são realizadas através dos chamados “upgrades”, mas estes são cobrados à parte, não são oferecidos gratuitamente pelo fabricante.

Por que essa diferença radical de percepção, para ações que são essencialmente de mesma natureza? Claro, há algumas diferenças óbvias entre elas, por exemplo:

– um “recall” de veículo pode envolver a correção de defeito que pode causar algum acidente grave. O “update” do programa pode não envolver acidentes (a menos que seja um “software” de controle de aeronaves, por exemplo), mas o defeito pode causar a perda de documentos importantes e eventualmente sérios prejuízos financeiros;

– no “recall” do automóvel, a pessoa precisa levá-lo a uma oficina autorizada, gastando tempo, combustível, etc.. No “recall” (“update”) do jogo ou programa, basta baixar e instalar um arquivo de atualização, ou às vezes nem isso – a atualização (correção de erros) é automática e a pessoa nem percebe que foi feita;

– outra diferença é que a montadora paga um alto preço pelo “recall”, com alto custo unitário por veículo em logística, peças e mão de obra, incorrendo geralmente em sérios prejuízos. Além disso, é obrigada a recolher e consertar os veículos ainda não vendidos. Assim, evitar “recalls” (ou seja, defeitos) é bom negócio e é preocupação constante da montadora. Já para o fabricante de “software”, o custo aparece apenas na identificação do defeito e na correção do programa, o que muitas vezes é feito, é bom ressaltar, com forte contribuição dos próprios usuários. O custo para corrigir cada programa individual vendido é praticamente nulo. Note-se que os programas originais, com erros, continuam sendo vendidos normalmente, e o usuário acha natural comprar, instalar esse programa e imediatamente em seguida baixar as suas correções (atender ao “recall”). O fabricante não precisa se preocupar em prevenir defeitos, eles podem ser corrigidos depois, na medida em que forem detectados pelos usuários, com baixo custo e sem prejuízo de imagem do produto nem da empresa.

Essas diferenças, entretanto, não são suficientes para explicar a diferença de percepção das pessoas entre “recalls” e “updates”. É provável que essa visão oposta tenha origem nas próprias estratégias de “marketing” que cada setor historicamente adotou para definir a imagem dos seus produtos no mercado.

No setor automotivo, sempre foi usada a imagem de força, resistência, durabilidade e “qualidade” dos automóveis. Neste contexto, um “recall” abala essa imagem, fazendo com que o dono do veículo sinta-se algo “traído”, e prejudicando a sua confiança na marca.

Já no setor de “software”, o “marketing” foi sempre dirigido para a função (ou variedade de funções) de um programa, e nunca (exceto para aplicativos corporativos) para a sua robustez, confiabilidade, estabilidade e ausência de erros de programação. Pelo contrário, desde o começo o usuário se acostumou com “paus” nos programas, perda de dados (o “backup” é exigência básica), “congelamento” do computador, etc., e recebe com alegria os “updates” que corrigem ou reduzem esses problemas. Não deixa de ser pertinente constatar que não é incomum que esses “updates” tragam novos erros, corrigidos posteriormente com outros “updates”.

Enfim, sejam quais forem as razões para essa diferença de percepção das pessoas, seria muito importante e saudável haver uma mudança dessa percepção em ambos os casos, fazendo com que:

– as pessoas passem a avaliar de forma mais positiva os “recalls” de veículos, percebendo que com isso, obrigadas ou não, as montadoras procurarão fazer veículos cada vez melhores; e

– as pessoas passem a avaliar de forma mais negativa os “updates” de jogos e outros aplicativos, obrigando seus fabricantes a oferecerem melhores produtos já na sua versão original inicial.

 

* Ronaldo de Breyne Salvagni é Engenheiro Naval, Mestre e Doutor em Engenharia, Professor Titular e Coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) 

Este artigo foi publicado no Portal da Revista Auto & Técnica em 26 de setembro de 2013

 


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